Estudo publicado no JCO Global Oncology reuniu 41 especialistas em câncer de cabeça e pescoço do Brasil e de outros países da América Latina, para mostrar, com base em evidências científicas, as melhores possibilidades de manejo dos pacientes com câncer de cabeça e pescoço em um cenário desigual quanto o acesso de recursos.
Sobre o estudo conversamos com Dr. Leandro Luongo Matos, primeiro autor da pesquisa.
Confira a entrevista.
O que motivou a realização um Consenso Latino-Americano sobre o Tratamento de Câncer de Cabeça e Pescoço?
No mundo, as condutas oncológicas que utilizamos são preconizadas pelo que é praticado nos países desenvolvidos. Aqui no Brasil, por exemplo, prevalecem as recomendações norte-americanas. Há países em que as recomendações europeias são prevalentes. No entanto, no contexto da América Latina ou de outros lugares com cenário semelhante ao nosso há diferenças importantes que devem ser consideradas, principalmente, em relação à disponibilidade de recursos. Muitas vezes não se trata de falta de recursos, mas da acessibilidade desigual em relação à população. Nesse contexto, o objetivo do Consenso Latino-Americano sobre o Tratamento de Câncer de Cabeça e Pescoço é promover o manejo adequado do paciente portador desse tipo de câncer dentro dessa realidade em que não temos acesso a todos os recursos. E quando me refiro a manejo adequado, quero dizer com a melhor evidência científica e tratamento possíveis.
Além da dificuldade de acesso, que outros aspectos foram considerados na pesquisa?
Foram considerados também características epidemiológicas da população. No Brasil e na América Latina, de maneira geral, a maioria dos tumores de cabeça e pescoço está relacionada a fatores de riscos clássicos, o tabagismo e o etilismo. Já nos Estados Unidos, os casos de tumores de orofaringe são predominantemente relacionados ao vírus HPV. Não temos no Brasil uma prevalência desse tipo tão grande. Outro dado importante é que a epidemiologia da doença e a dificuldade de acesso a recursos de tratamento estão muito relacionados porque é a população mais desfavorecida economicamente que está mais exposta ao tabagismo e etilismo.
Como você avalia o cenário brasileiro do tratamento de câncer de cabeça e pescoço no contexto do Sistema Público de Saúde (SUS)?
O tratamento inicial do câncer de cabeça e pescoço é feito em centros oncológicos terciários, ou seja, hospitais voltados ao atendimento de alta complexidade. No Brasil, no ambiente do SUS, precisamos de uma estrutura hospitalar e uma equipe multiprofissional dedicada ao tratamento desses doentes. Inicialmente, não há necessidade de recursos tecnológicos muito sofisticados. Portanto, o maior desafio é o diagnóstico precoce. Porque nessa fase inicial da doença, o tratamento básico do câncer de cabeça e pescoço não precisa de uma grande estrutura. Você precisa de um time bem entrosado, basicamente. No entanto, se o doente já chega com a doença avançada, vamos precisar de recursos adicionais, como equipe cirúrgicas especializadas em reconstrução, equipe multiprofissional para reabilitação, exames de imagem de melhor definição. Nesse quadro, não temos no SUS o melhor tratamento que poderíamos dar, como a utilização de drogas alvo ou imunoterapia, por exemplo.
Nesse cenário do SUS, como o Consenso pode ajudar?
Esse cenário está contextualizado no Consenso. Há indicações sobre o que fazer quando não temos o melhor para nosso paciente. Claro que a solução ideal também está apontada no Consenso e o médico que trata tumores de cabeça e pescoço sabe o que fazer. O Consenso não tem a pretensão de ensinar o médico, mas de pontuar que ao ter que optar por determinado procedimento, ele não está perdendo em evidência científica, ou deixando de dar uma boa assistência ao paciente. Assim, pontuamos para os especialistas que tratam esses doentes, dentro do que eles estão fazendo, o que ele está promovendo de qualidade para seu paciente.
Poderia citar um exemplo prático dessa situação?
Vamos supor que ao consultar um guideline norte-americano, a recomendação seja fazer o estadiamento de um paciente com tumor avançado com o PET Scan. Mas essa tecnologia não está disponível. No Consenso haverá indicação de alternativas. Outra situação, um tumor precoce em que precisamos pedir uma tomografia, mas a demora para conseguir esse exame é de 45 dias. Também em uma situação como essa, há alternativas no Consenso que podem dar respaldo às condutas do médico. O Consenso é hierarquizado, contemplando vários cenários.
Quais são os públicos-alvo do Consenso?
O estudo foi feito com foco em três especialidades: o cirurgião de cabeça e pescoço, o oncologista clínico e o rádio-oncologista. Nos grande centros, em geral, existem médicos dedicados a subespecialidades do câncer de cabeça e pescoço. Essa não é a realidade de centros menores, onde o cuidado do paciente é realizado por médicos oncologistas gerais. Assim o Consenso é uma ferramenta muito útil para locais onde a demanda é grande e não há as subespecialidades.
Como foi realizado o Consenso e como está estruturado?
O Consenso é um documento extenso, estruturado para proporcionar uma consulta o mais prática possível e de livre acesso. Resumimos o cerne do estudo em cinco tabelas de fácil compreensão. Há perguntas e respostas para diversas situações, acompanhadas de indicações sobre as possibilidades do que pode ser feito, sempre com base em evidências científicas recomendadas por um grupo de especialistas. As perguntas foram elencadas por grupos de especialistas da América Latina das áreas cirúrgica, oncologia clínica e radioterapia, considerando cada um dos tipos de câncer de cabeça e pescoço. Depois, essas perguntas foram enviadas para duplas de especialistas de diferentes países da América Latina para que fossem respondidas, sempre embasadas pela literatura científica. As perguntas e respostas voltaram para o grupo original, que coordenou um processo de votação entre os participantes do Consenso para checar se todos estavam de acordo com a resposta. As perguntas/respostas que não tiveram consenso voltavam para a dupla de especialistas para reformulação e uma segunda rodada de votação. No documento existe, inclusive, um material suplementar detalhando todo esse processo. Foi um trabalho de 18 meses até a publicação final.
Qual é sua expectativa em relação ao Consenso?
O Consenso é um projeto que há muito tempo a Sociedade Brasileira de Cirurgia de Câncer de Cabeça e Pescoço (SBCCP) e o Grupo Brasileiro de Câncer de Cabeça e Pescoço (GBCP) queriam fazer. Agora que esse projeto foi concretizado, o mais importante é que os médicos apliquem. Se tivermos o mínimo de protocolo de como esses pacientes devem ser tratados, vamos proporcionar um cuidado melhor a todos eles.
Acesse:
Matos et. al. Consenso Latino-Americano sobre o Tratamento do Câncer de Cabeça e Pescoço. JCO Glob Oncol 10, e2300343(2024). DOI: 10.1200/GO.23.00343
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