Além da cura: o papel do fonoaudiólogo na reabilitação do paciente de câncer de cabeça e pescoço
- gbcpcomunicacao
- 23 de abr.
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Tratamentos cada vez mais eficazes fazem parte do universo do câncer de cabeça e pescoço. No entanto, paralelamente a cura da doença, podem vir sequelas do tratamento que atingem a voz, a capacidade de engolir alimentos e até redução na abertura da boca.

A reabilitação dessas funções essenciais para a saúde e qualidade de vida do paciente é trabalho do fonoaudiólogo, que atua em parceria com a equipe multidisciplinar.
Confira a entrevista sobre esses temas com a Dra. Elisabete Carrara de Angelis, coordenadora do Núcleo de Fonoaudiologia do A.C.Camargo Cancer Center:
Quais são os objetivos do tratamento fonoaudiológico em relação aos pacientes com câncer de cabeça e pescoço?
Em geral, o trabalho do fonoaudiólogo tem, principalmente, dois grandes objetivos, a reabilitação da comunicação e da dificuldade de deglutição ou disfagia. Entre as possíveis sequelas de comunicação estão rouquidão, alterações vocais, problemas de articulação e de pronúncia, voz anasalada e até perda da capacidade de fala. Quando há sequelas de deglutição, o paciente pode ter dificuldade de se alimentar pela boca e corre riscos de engasgos e do alimento ir para o pulmão, o que pode causar uma pneumonia. Importante lembrar que, em geral, pacientes de câncer de cabeça e pescoço são fumantes e consequentemente tem o pulmão mais frágil. Além disso, há o trismo, que é a redução da abertura de boca que tanto os fisioterapeutas como os fonoaudiólogos podem trabalhar na reabilitação.
Em que momento, o fonoaudiólogo entra na jornada de pacientes tratados com cirurgia?
Em pacientes tratados com cirurgia, o fonoaudiólogo pode entrar no pré-operatório, quando o paciente está muito ansioso e com muitas dúvidas sobre suas possibilidades de reabilitação. Ele está se perguntando, será que vou conseguir falar e me alimentar. Em situações como essas podemos conversar com o paciente. Mas essa orientação deve acontecer em casos específicos. Já no pós-operatório, o fonoaudiólogo entra em todos os casos após a liberação do médico. Isso acontece, normalmente, após 10 ou 15 dias da cirurgia, dependendo de fatores, como o tipo de cirurgia e o tamanho da lesão, mas é sempre uma definição médica.
E pacientes que são tratados com radioterapia?
Nesse caso, o protocolo é um pouco diferente. Nos pacientes irradiados, a ciência mostra que a terapia fonoaudiológica deve entrar antes e/ou durante a radioterapia. Isso porque se fizermos nosso trabalho dessa forma, o paciente vai chegar ao final do tratamento com melhor qualidade de vida, falando e comendo melhor.
Como é o passo a passo do fonoaudiólogo com o paciente?
Primeiramente, fazemos uma avaliação, que consiste em uma anamnese para verificar queixas, avaliar aspectos da voz e da deglutição. Essa entrevista com o paciente é detalhada e pode durar mais de uma hora. Também fazemos uma avaliação clínica da voz e da deglutição. Se for necessário, encaminhamos para uma avaliação instrumental que pode ser realizada por um otorrinolaringologista ou um fonoaudiólogo especializado. Nessa avaliação instrumental pode ser necessária a realização de exames radiológicos. Com bases nos dados da anamnese, da avaliação clínica e instrumental, fazemos o planejamento terapêutico individualizado para o paciente e ele começa sua reabilitação.
A reabilitação dura quanto tempo?
Em geral, a reabilitação é realizada duas vezes por semana por um período de dois meses. Mas há alguns estudos sobre a Terapia Breve Intensiva (TBI) em que pacientes realizam a terapia fonoaudiológica diariamente e o prazo de tratamento diminui para três semanas.
E quais pacientes são elegíveis para a TBI?
Ainda não temos um critério definido pela ciência, precisamos de mais estudos. Hoje a TBI acaba sendo realizada de acordo com a disponibilidade do paciente, tanto na reabilitação da fala como da deglutição. E o que difere é o tempo de tratamento e não o resultado. Por enquanto, o único estudo que temos em relação aos resultados da TBI é que ela parece ser mais eficiente que o tratamento convencional em casos específicos de paralisia de cordas vocais.
Independentemente de uma terapia mais breve ou de dois meses, é possível ter, ainda na etapa do planejamento, uma ideia do resultado que será alcançado?
Não é possível. Claro que pela nossa experiência e dependendo, por exemplo, do tipo e extensão da cirurgia e do órgão que foi retirado, podemos ter uma certa perspectiva de resultado. Casos de pacientes que tiveram tratamentos combinados de cirurgia e radioterapia costumam apresentar prognóstico mais difícil. Também é muito comum o paciente ter uma resposta inicial muito boa e, depois, a curva de melhora ir diminuindo até atingir um platô. Quando isso acontece é sinal de que o paciente está chegando em seu máximo. De algumas coisas temos certeza: o resultado do tratamento é individualizado, o paciente sempre alcançará melhora e seu engajamento é muito importante.
Como lidar com a expectativa do paciente e outros fatores emocionais durante o tratamento?
O tratamento do paciente de câncer de cabeça e pescoço é multidisciplinar do começo ao fim. Nessa etapa de reabilitação, além do fonoaudiólogo, o psicólogo, assim como nutricionistas e fisioterapeutas, têm papeis importantes e trabalham em conjunto. Além de questões emocionais, que o psicólogo aborda, o paciente pode sentir dores e dificuldades que podem ser manejadas pelo fisioterapeuta e nutricionista.
Quais os principais desafios relacionados à reabilitação da voz?
A reabilitação da voz tem algumas particularidades. Do ponto de vista clínico, nós, profissionais, concluído o tratamento do paciente podemos avaliar que o resultado foi maravilhoso, considerando o que foi necessário retirar cirurgicamente para livrar o paciente do câncer. No entanto, por melhor que seja o resultado, a voz sempre será diferente do que era antes da cirurgia. Isso acontece com maior intensidade, principalmente, em pacientes submetidos a laringectomia total. O paciente perde sua identidade vocal e necessita trabalhar essa questão para se apropriar de sua voz novamente.
Quais são os recursos fonoaudiológicos utilizados na reabilitação da voz do paciente?
Nós temos técnicas fonoaudiológicas que foram estudadas e descritas há algum tempo, como a voz esofágica em que o paciente aprende a utilizar o esôfago para produzir voz. Em termos de recursos tecnológicos, temos para pacientes que perdem completamente a voz devido a retirada total da laringe, a possibilidade de utilizar laringe eletrônica ou eletrolaringe. Trata-se de um aparelho com bateria recarregável, que o paciente posiciona externamente perto da garganta para produzir uma voz perfeitamente compreensível, mas totalmente diferente da voz humana. Outra possibilidade são as próteses fonatórias, colocadas cirurgicamente, uma possibilidade para casos de pacientes que perderam a laringe.
E o que há em termos de inovações?
Temos um trabalho muito inovador e pioneiro no mundo, que foi produzido e publicado por nós, do A.C.Camargo, em novembro de 2024, sobre técnicas de neuromodulação. Estamos no âmbito da pesquisa, essa técnica ainda não está na prática clínica, mas indica um futuro bastante promissor. Essa pesquisa mostra que é possível ativar o cérebro do paciente que, por exemplo, perdeu metade da língua em uma cirurgia oncológica, para compensar essa parte que falta. Isso vale para quem tirou metade da laringe ou das cordas vocais e mesmo para quem ressecou totalmente a laringe e precisa usar o esôfago para produzir a voz. Antes desse estudo, acreditávamos que nosso trabalho era periférico, nas estruturas da boca, cordas vocais, laringe, faringe etc. Hoje sabemos que estamos trabalhando o cérebro. Relatamos no estudo o caso de uma paciente submetida a ressecção completa da língua, passado pela reabilitação e alcançado seu platô. Fizemos a neuroestimulação e os ganhos da paciente foram impressionantes. Agora nós estamos aumentando a casuística e trabalhando com mais 20 pacientes.
O que mais você destaca como evolução na reabilitação do paciente de câncer de cabeça e pescoço?
Acredito que tem sido muito importante a ideia recente de ampliar a jornada de tratamento do paciente de câncer de cabeça para além da reabilitação, adentrando questões relacionadas a sua inclusão profissional e social depois do câncer. Isso é importante, inclusive, porque cada vez mais a possibilidade de cura do câncer de cabeça e pescoço tem sido ampliada. Paralelamente, os casos relacionados a contaminação pelo HPV (Papilomavirus humano) tem crescido e atinge um perfil de pacientes mais jovens que vão viver por muito tempo.